Sobre o percurso a fazer para um melhor futuro ...
Hoje resolvi falar acerca de algo que desde há muito me apoquenta: qual o rumo do fitness e se o mesmo o levará a bom porto. Partindo da premissa que a evolução do fitness deverá passar por profissionais com maior e melhor conhecimento, considero que o setor, a grosso modo, tem procurado essencialmente atalhos (intelectuais e de atuação) ao longo dos últimos anos. Desta forma, procurarei explicar qual a minha posição relativamente ao processo de escolha de estudo e formação por parte dos profissionais que se queiram diferenciar pela excelência de atuação. Para facilitar esta explanação, irei referir-me àqueles que considero serem os meus maiores focos de desassossego – “questões resolvidas” e “preocupação com o acessório” –, procurando clarificar não só o porquê de assim os designar, como também quais as reais características que definem um melhor conhecimento. Confuso? Eu explico, prometendo ser breve na exposição, ficando as conclusões para o leitor.
Questões resolvidas
Desde simples posts nas redes sociais, a formações de fim de semana, o tema de “o(s) melhor(es) exercício(s)” é recorrente. A crença em fórmulas mágicas, a preguiça mental e/ou mesmo a perseguição por diversidade metodológica leva a que muitos bebam desses saberes envenenados, que prometem dotar os profissionais de exercício físico de poderosas ferramentas, diferenciadoras nas suas atuações, mas que acabam por torná-los apenas e só em “mais um no rebanho”. No mínimo, não trazem nada de diferenciador, apenas novas guidelines e relações de causa-efeito sem qualquer tipo de respeito pela individualidade do cliente. No extremo, são autênticos números circenses, que em nada abonam a favor de uma imagem respeitada e prestigiada dos profissionais do setor, quer pelos seus pares, quer pelos seus alunos. Sim, são visualmente chamativos e cativantes, mas continuam sem considerar o praticante. Se, em contexto de sala de exercício e/ou aulas de grupo, este tipo de atuação já não augura ser uma boa premissa, então, no que toca ao serviço de Personal Trainer, assume-se como um antagonismo total do que este haveria de ser. Para piorar a situação, temos ainda a questão “redutora” desde sempre presente no fitness: determinado exercício para treinar/melhorar/evoluir “apenas e só” determinado grupo muscular. Estou a referir-me ao “agachamento para treinar os glúteos”, “o supino para melhorar o peitoral” ou “a prancha para solicitar o transverso abdominal”. Penso que o leitor haverá de concordar que cada um dos exercícios que mencionei representa muito mais do que apenas a estimulação de um grupo muscular e que toda a informação que seja demasiado “redutora”, haverá de ser deixada de lado.
Procuro desta forma alertar o profissional que almeje a excelência, que seja cético e ponderado no momento da seleção das suas fontes de conhecimento e estudo. Desde os profissionais e/ou páginas que segue nas redes sociais, às formações que escolhe para continuar o seu processo formativo, o escrutínio deverá existir para não ver o seu investimento (temporal e monetário) encalhado em qualquer uma das situações acima mencionadas (ou outras do género). Considero ser normal ao longo da evolução profissional pensar que “quanto mais informação recolher, melhor profissional será”, mas deverá tornar-se óbvio que quantidade não significa, necessariamente, qualidade. Todos os profissionais, desde recém-formados a experientes, deverão preocupar-se em não serem simples recetáculos acríticos de fórmulas mágicas ou meros regurgitadores de feedbacks baseados em relações causais precipitadas e, muitas vezes, infundadas. Ao invés, a sua evolução deverá pautar-se por se comportarem como uma peneira, um filtro de conteúdos e conhecimentos, procurando antes aqueles que são baseados em evidência científica e/ou sustentados por disciplinas fundamentais da nossa área, como a Anatomia, Fisiologia, Biomecânica ou Neurofisiologia. Resta agora perceber como conseguir selecionar o verdadeiro conhecimento.
Em tempos em que tudo parece ser “a última bolacha do pacote”, um conselho útil poderá ser procurar o conteúdo partilhado pelo profissional/escola em causa e escrutiná-lo à luz das disciplinas supramencionadas. Toda a informação que se pareça com guidelines, exercícios “para todos”, “os melhores exercícios” ou “fórmulas mágicas”, haverá de ser ignorada, ou, pelo menos, averiguado de que contexto foi extraída. Da mesma forma, todo o conteúdo que se assuma como obscuro ou excessivamente complexo (recorrendo à falácia da verbosidade), ou seja, todo aquele cuja própria linguagem procura confundir o leitor para que este se sinta “ignorante” e/ou inseguro (seja de forma propositada ou não), deverá ser feito igualmente um swipe. Não quero com isto dizer que todos os conceitos complexos são para desprezar e ignorar, mas antes que a respetiva comunicação deverá ser feita apenas e só na medida necessária, sendo adaptado ao contexto em que é passado. Desta forma, a mensagem passada em posts nas redes sociais, blogs ou em momentos de formação presencial, deverá ter níveis de complexidade diferenciados, uma vez que o contexto de comunicação entre formador e formando é completamente distinto. Desta forma, deverá ser procurado todo o conhecimento que passe no aval da evidência científica, assim como da lógica, ética e sensatez que deverão reger a nossa atuação profissional.
Preocupação com o acessório
Comecemos esta secção com uma questão: se tiver de escolher entre a “forma” do exercício e a “dose” do mesmo, qual destes pontos consideraria como prioritário numa construção particularizada?
(continue a ler mais abaixo...)
Poderíamos defender cada um dos conceitos supracitados como fundamentais no processo de treino e, de facto, assim o são. Contudo, considero que a “dose” do exercício – a sua DURAÇÃO (medida em repetições, tempo, cadência, etc. – o que consideramos muitas vezes como o “volume de treino”) e o seu ESFORÇO (magnitude total do jogo de forças que atuam a todo o momento sob o praticante – que nos habituamos a denominar de “intensidade”) –, será decorrente, aliás, dependente, da “forma” do exercício (relação entre o corpo do aluno e a resistência que o desafia). Ademais, acrescento ainda que essa relação de dependência será tanto maior e evidente quanto mais a “forma” do exercício estiver de acordo com as características fisiológicas do praticante. Desta forma, espero que o leitor chegue à conclusão que, em termos de “qual o ator principal”, essa escolha penda para a “FORMA” DO EXERCÍCIO. Se considera que estou a ir longe demais, permita-me uma breve explicação para o que afirmo. Primeiramente, não estou a afirmar que a duração e o esforço que o treinador define para desafiar o seu aluno sejam de menosprezar ou que não têm importância. Considero que são fundamentais no sentido de garantir que a tal “dose” do exercício não seja excessiva, transformando o “medicamento” que poderá ser o exercício físico num autêntico “veneno”. Sim, duração e esforço são importantes. O que eu afirmo é que ambos vêm APÓS a escolha de qual a relação entre o corpo do praticante e a resistência contra a qual será desafiado. Neste sentido, estando já bem documentado que a capacidade contráctil é menor nos extremos da amplitude muscular (1), então a resistência deverá ser ajustada para se adequar a este parâmetro fisiológico. Acaso não haja oportunidade para tal, não significa que o exercício estará errado, mas antes que essa desadequação deverá ser tida em conta para não ser pedido ao aluno algo que, pura e simplesmente, é-lhe impossível de realizar. Existem fatores musculares, articulares e neurais que tornam certas formas de exercício impraticáveis (as quais não vou detalhar, pois não cabem num texto desta dimensão). Tendo isso presente, o profissional de exercício físico, mesmo nos casos em que a “forma” do exercício está de acordo com as características neuro-músculo-articulares do seu aluno, deverá perceber que a “dose” será escrava dessas mesmas adequações. E porque é que que tal noção é importante? Para diminuir o risco de violar a oportunidade de estimulação atual do seu aluno. Neste seguimento, poderíamos mesmo afirmar que quando “o que está fora, coincide com o que está dentro”, o limite do exercício (a “dose”) será dado pelo término dessa mesma coincidência. Quando o que “está fora” ultrapassar a capacidade “do que está dentro”, ou o exercício cessa, ou o praticante irá realizar uma qualquer compensação para cumprir com a continuidade do exercício (alterando a relação entre o seu corpo e a resistência).
Para além de tudo isto, num serviço que se denomina de Personal, apenas faz sentido se os exercícios forem construídos de acordo com a individualidade de cada um. Quais as posições a adotar e a evitar, que partes do corpo do cliente irão mover e irão ficar paradas (e de que forma assim o farão), qual o instrumento a escolher, qual a variação da resistência ao longo da amplitude de movimento. Enfim, todas estas decisões de construção de exercícios irão influenciar qual a “dose” que o aluno conseguirá suportar. Apesar disto, o fitness está pejado da procura pelos “melhores métodos para”: “qual o intervalo de repetições para uma melhor (e mais rápida) hipertrofia?”; “quais os melhores métodos para promover a queima de gordura?”; “quais os benefícios do TRX®, do BOSU®, da electroestimulação de corpo inteiro, enfim, quais as melhores “doses” para se atingirem os objetivos?”. Mas repare-se que esta procura vem antes de equacionar QUEM está à sua frente.
Aqui chegado, penso que se torna por demais evidente que a escolha na procura de conhecimento deverá iniciar-se pela “forma” e não pela “dose” dos exercícios. Pelo estudo das normas anatómicas, para melhor conseguir inferir acerca de QUEM temos à nossa frente, qual a sua variabilidade face a esses mesmos valores normativos. Depois, teremos de estudar quais as particularidades da resistência que o irá desafiar. Perceber qual a diferença entre um cabo, um haltere, um elástico e, dessa forma, construir os exercícios que mais se enquadram com as características, necessidades e objetivos do aluno em questão. Com isto conseguiremos descobrir qual a melhor “forma” de o desafiar e, decorrente daí, qual a “dose” adequada para que esse desafio seja justo e cumprível.
Um novo fitness
Quem já me conhece sabe que, neste capítulo, não cedo um milímetro: o profissional de exercício físico que busca a excelência deverá embarcar num caminho de estudo constante. Mais não significa melhor e, num mundo onde temos acesso a quantidades infinitas de conhecimento – mas sem filtros ou revisão –, a capacidade de selecionar as melhores fontes será fundamental. Métodos milagrosos, relações de causa-efeito precipitadas e/ou estanques, atividades circenses ou discursos obscuros/verbosos deverão ser eliminados desde logo. Assim, ao invés de se procurar o “como” ou “com o quê” se poderá alcançar determinado resultado, a prioridade deverá ir para o estudo do corpo do cliente (as suas características neuro-músculo-articulares) e da resistência contra a qual será desafiado.
Em conclusão, sugiro que se estude o que mais importa: QUEM poderá ser o nosso cliente, de forma a ser possível a construção de exercícios adequados, desafiantes e, acima de tudo, justos!
@ David Costa; 2022
Direito de autor protegidos
Bibliografia referida:
1. Neumann, D.: Kinesiology of the musculoskeletal system: foundations for physical rehabilitation. 3rd edition. Elsevier, 2018.
Comments