Os vieses mais populares no contexto do fitness e exercício ...
Imagine o seguinte cenário: a Maria é aluna do João. É extremamente dedicada, adora treinar e nunca perde uma sessão por nada. Um dia, no início do treino, a Maria reporta ao João uma forte dor na região lombar que migra até um dos pés. Mal pode andar! Qualquer gesto despoleta dores lacinantes! Não contactou nem um médico nem um fisioterapeuta. O João é extremamente responsável e conhece os limites legais da sua intervenção e além disso está consciente dos limites do seu conhecimento. A tomada de decisão é automática e rápida e não lhe exigiu qualquer esforço mental apesar da preocupação: sem qualquer dúvida a sessão de treino é cancelada. Passaram-se uns meses e afinal a Maria foi sujeita a cirurgia devido a hérnia lombar. Fez Fisioterapia e quer agora retomar os treinos personalizados. Porém, existem ainda algumas reservas e o João depara-se agora com elevado grau de incerteza quanto à intervenção mais apropriada dada a natureza complexa do caso. Decide contactar tanto o médico como o fisioterapeuta a fim de reunir o maior número de informações possível, faz revisões em casa à anatomia, neurofisiologia e biomecânica. Pesquisa acerca das evidências que relacionam exercício e dor lombar crónica (DLC). Há algum grau de incerteza e isso fá-lo refletir profundamente sobre o caso da Maria.
Entretanto, as intervenções do João revelaram-se um sucesso. Passado algum tempo a Maria progride de um treino de resistência manual isométrico até um treino de alta intensidade. Os fisioterapeutas ficam a saber e passam a recomendar este treinador aos seus pacientes. Ao fim de meia dúzia de casos aparentemente bem-sucedidos ganha tremenda confiança no seu trabalho. Já nem precisa de informação clínica adicional nem de fazer revisão e atualização à literatura especializada. Ele até esfrega as mãos cada vez que aparece um cliente pós cirurgia ou com dor lombar crónica. Chega mesmo a desenvolver um método pessoal com uma sequência de exercícios e respetivas doses de volume e intensidade que resultam “sempre” e confirmam praticamente aquilo que ele espera. Encontrou uma solução que encaixa num cliente com determinado padrão. Acredita que aquela intervenção é infalível, desvaloriza um ou outro caso que corra menos bem, mas também não têm consequências graves. Já nem perde um terço do tempo a estudar os casos, nem se desgasta como outrora.
Um dia a D. Avelina visita o João. Mais um caso de DLC. Mais um caso que à partida tudo tem para correr bem. Só que…não! Cada vez que treinaram o quadro piorou. Primeiramente ele nem questiona o seu método. Tem de haver algo lá fora que interfere com o seu método infalível. Será da cadeira? Será de aspirar a casa? Ou, espera lá, pois claro, o colchão onde dorme? Ao fim de alguns anos o João faz um balanço da sua experiência. Houve casos que correram bem, em muitos a sua intervenção foi inócua, noutros o cenário agravou-se. Quer ele aceite ou não, houve de facto algumas “D. Avelina”. O João tem duas saídas: encolhe os ombros, não tem a obrigação de ser bem sucedido com todos os casos, desiste de se aproximar de uma verdade um pouco melhor, está conformado e mantém o seu método supostamente infalível (que por sinal até vende bem) pois a responsabilidade vai no dia a dia dos alunos; ou enfrenta a dura realidade de que de facto houve mais casos mal sucedidos do que era de esperar, analisa-os um a um tanto quanto a memória não o traia e, finalmente, sem se deixar ofuscar pelas situações bem sucedidas consegue olhar para o cenário numa perspetiva em que os erros podem de facto também estar nele próprio! Por muito boas intenções que tenha, compreende finalmente que é humano e portanto é falível, que a natureza complexa da biologia humana facilmente o sujeita à ignorância acerca de informações adicionais sobre a pessoa seguinte. Compreende que as experiências bem-sucedidas eram apenas um indicativo, mas não uma garantia para as seguintes.
HEURÍSTICAS E VIESES
Os conceitos de heurística e de viés foram primeiramente introduzidos e estudados por Daniel Kahneman e Amos Tversky na década de 70. Nos livros de divulgação científica Judgment Under Uncertainty: heurístics and biases e mais recentemente Think, fast and slow, os dois cientistas fazem uma síntese do modelo de cognição humana demonstrando que os procedimentos para as tomadas de decisão são compostos por pouca ou nenhuma racionalidade. Convém aqui contextualizar estes dois conceitos antes de os definir ou descrever. Antes mais, de onde provêm? Kahneman e Tversky propuseram um modelo dual de processamento da cognição humana os quais denominaram de Sistema 1 e Sistema 2. Assim, muito resumidamente, o Sistema 1 tem como principais características ser inconsciente, não intencional, rápido, sem esforço, associativo, afetivo, rígido e, sobretudo, intuitivo. O Sistema 2 de pensamento humano é caracterizado por ser consciente, intencional, lento, racional e portanto exige esforço e lógica. Para melhor se entender como cada um dos sistemas propostos funciona, considerem-se os seguintes exemplos: para calcular uma soma de 2 + 2, a resposta surge-nos de maneira imediata, sem esforço e sem recurso a papel ou calculadora. No entanto, para efetuar o produto de 321 por 859 teremos de nos deter a pensar num processo muito mais demorado e racional. Ora, no primeiro exemplo chegamos perfeitamente ao resultado sem termos de parar a leitura deste mesmo texto. Foi um pensamento rápido e sem esforço, ou seja, um processo cognitivo que se aproxima do Sistema 1. As aprendizagens matemáticas desde o primeiro ano de escolaridade tornam a resolução automática. Já no segundo exemplo, se efetivamente quisermos obter o resultado daquela equação, teremos de colocar uma determinada intenção, iremos demorar mais tempo e empregar maior atenção. Portanto, um processamento que se aproxima claramente do Sistema 2. Repare que não empreguei o termo “aproxima" arbitrariamente. É importante referir, em jeito de breve nota, que apesar da distinção destes dois sistemas, eles não funcionam de maneira separada. Os autores, citados pelo psicólogo brasileiro Ronaldo Pilati, no seu livro Ciência e Pseudociência – porque acreditamos apenas naquilo que queremos acreditar, referem que “no nosso quotidiano, essas duas formas de pensamento não operam de forma isolada, mas sim em interação. O fato é que a forma intuitiva de pensamento tem-se mostrado preponderante em muitas situações, como quando tomamos decisões em momentos em que não temos clareza total sobre os resultados, ou seja, quando é incerta a consequência da nossa decisão”.
Voltemos agora ao cenário imaginário no início deste artigo. Facilmente percebemos que o João ao decidir cancelar o treino da Maria devido às fortes dores que esta reportava, se aproximou de um pensamento do Sistema 1. Ele era um treinador responsável, ciente dos limites da sua intervenção na dimensão legal e do conhecimento e, portanto, a decisão foi automática. No entanto, quando a Maria retomou os treinos, num contexto pós cirúrgico e pós fisioterapia, o João viu-se num processo de tomadas de decisão que já eram do seu âmbito e que envolveram estudo especializado, recolha de informações adicionais e profundas reflexões. Ou seja, inclinou-se para o Sistema 2.
De acordo com o mencionado psicólogo “o pensamento do Sistema 2 guarda maior semelhança com a maneira pela qual a ciência funciona". Porém, o problema surge quando os processos automáticos se sobrepõem aos controlados. Por exemplo, quando o João, confiante em alguns resultados positivos com os seus alunos, passou a fazer julgamento dos casos e tomou decisões de forma quase automática. Recorde-se que até desenvolveu um método para um determinado padrão de clientes, economizando assim muita energia mental e poupando tempo. No fundo, ele criou atalhos. E são precisamente esses atalhos mentais para se fazer julgamentos e tirar conclusões de maneira rápida e eficiente que Kahneman e os seus colaboradores designaram de heurísticas. Citando os próprios: “são um tipo específico de processo cognitivo que caracteriza o Sistema 1. (…) em muitas situações, o uso dos atalhos funciona é eficiente e preciso. Mas há outras situações em que o uso de atalhos pode levar ao erro". Erros cognitivos designados de vieses. Segundo o DLP, viés é um desvio ou deformação na maneira de ver, julgar ou agir. Mais especificamente, o psicólogo Ronaldo Pilati define-os como “subprodutos da maneira como a cognição funciona e que fazem com que nossa forma de analisar o mundo tenda a ser errónea em muitas situações (…) Como não somos capazes ou não temos a motivação para evitar esses erros em muitas das situações em que elaboramos entendimentos sobre o que nos cerca, os vieses acabam por estruturar nossas crenças, que não são necessariamente precisas para dar sentido ao mundo”. Ou seja, os vieses cognitivos revelam a grande influência dos processos intuitivos nos nosso julgamentos e decisões. Segue-se uma seleção de heurísticas e vieses que entendi serem das mais frequentes na nossa profissão de Técnicos de Exercício Físico ou Treinadores Desportivos.
Ancoragem (heurística): atalho de tomada de decisão em que o julgamento é afetado por uma informação inicial prévia que influencia a decisão final.
Exemplo: a influência do testemunho de um aluno logo no início da sessão de treino nas tomadas de decisão do treinador. Se reporta pouca vontade, tendemos a ser menos exigentes; se se mostra muito entusiasmado, é provável que tendemos a construir uma sessão mais intensa independentemente de outros indicadores fisiológicos ou do balanço das sessões anteriores.
Melhor que a média: diz respeito à nossa tendência para pensarmos que o nosso comportamento ou desempenho são superiores à maioria dos indivíduos.
Ilusão de controlo: tendência a sobrestimar o nosso controlo sobre situações, eventos ou indivíduos.
Exemplos: a tendência que o João foi demonstrando ao longo do tempo ao convencer-se que tinha todas as intervenções controladas sem precisar de pedir mais informações aos outros profissionais. Outro exemplo comum, será quando o treinador julga ter controlo perfeito do processo de treino apenas pela análise de dados diretos do GPS ou do cardio-frequencímetro tendendo a ignorar a complexidade da fisiologia humana.
Otimismo irrealista: tendência a avaliar de forma positiva situações ou ocorrências de natureza incerta, principalmente eventos futuros.
Exemplos: após alguns casos aparentemente bem-sucedidos, o otimismo revelado pelo João sempre que recebia um cliente com sintomas semelhantes, tendendo a ignorar pormenores ou informações adicionais que tornavam a sua intervenção completamente inócua ou desastrosa. Outro exemplo comum do fitness tem a ver com a obtenção de resultados em poucas semanas. Na área desportiva, a esperança de que determinada periodização possa trazer as performances desejadas também é ilustrativo do otimismo irrealista.
Perceção seletiva: tendência em percecionar apenas detalhes num determinado contexto que sejam coerentes com as expectativas. Eventos coerentes com as expectativas tendem a atrair mais atenção.
Exemplo: suponhamos que o João era professor de Pilates. De facto existem boas provas da eficácia desta disciplina no tratamento da DLC, mas o treinador ignorava aspetos da biomecânica como os braços de momento ou outros detalhes prévios da neurofisiologia porque não os estuda. É certo que iria reparar em detalhes coerentes apenas com o seu conhecimento acerca da execução dos exercícios propostos.
Correlação ilusória: tendência a estabelecer associações entre eventos quando na realidade nos baseamos em poucas informações ou meras observações pessoais.
Exemplo: suponhamos que todos os clientes com DLC que o João recebeu reportaram melhorias quando ele tentou supostamente ativar e isolar o músculo transverso abdominal. Porque lhe venderam essa ideia numa altura em que havia poucos ou nenhuns estudos sobre o assunto, concluiu que a causa da melhoria seria essa sem antes consultar o que vem descrito na literatura atual ou nem sequer supôs que poderia haver outros elementos do treino dos quais os clientes beneficiaram. Este tipo de enviesamento ganha força com o seguinte…
Confirmação: tendência para acreditar no que queremos acreditar, buscando informações que confirmem as nossas crenças e expectativas para explicar a realidade.
Exemplos: a partir do momento que o João acreditou que alguns aspetos da sua intervenção melhoravam o quadro dos seus clientes, independentemente de alguns casos terem corrido menos bem, ele buscou sempre pormenores que confirmassem a sua crença. Infelizmente temos um fitness ainda cheio de confirmações daquilo que se faz crer há décadas. Ora, uma postura verdadeiramente científica propõe exatamente o oposto: em vez de confirmar, procura refutar ou falsear aquilo que se crê. Deverá ser uma postura cética em que a procura por confirmação deverá ser desacreditada. Se a ideia resistir à falsificação, ela ganha robustez…momentânea. Na verdade, trata-se de um processo contraintuitivo de análise da informação. Todas estas ideias e crenças de que o nosso fitness está cheio são bem mais atrativas quando a base da sua sustentação está na confirmação e são desprovidas de confronto com a realidade: os estudos/a prova empírica.
Sobrevivente: tendência de nos focarmos ou concentrarmos nas pessoas que passaram num processo de seleção ignorando as que não passaram, o que pode conduzir a conclusões falsas.
Exemplos: o João focou-se exclusivamente nos casos bem-sucedidos. Enganado pelo suposto sucesso destes chegou mesmo a criar um método, que por sinal apenas melhorou os que resistiam a ele! Sobre este viés deixo as seguintes questões ao leitor: o que tem sido o nosso fitness senão apenas uma oferta dirigida àqueles que mais tempo são retidos nos seus serviços? E o que dizer dos quase 60% que abandonam ao fim de 12 meses (dados do barómetro do fitness - 2019)? Não serão eles a verdadeira prova (silenciosa) do que vai nos serviços prestados?
Para concluir, quero alertar o leitor que este é um artigo cujo tema foi ultra-mega-resumido! Contudo, julguei pertinente abordar mais uma ferramenta que eleve o nível crítico, neste caso, autocrítico das nossas atuações. A noção que o erro pode ser uma constante sempre presente na nossa atividade de treinador, que estamos sujeitos às naturais falhas cognitivas humanas, pode levar a sentimentos de frustração ou desânimo. Porém, errar num ambiente composto por critérios que permitam controlo ou reconhecimento dos erros é uma grande vantagem. Foi precisamente para diminuir o grau de erro que se desenvolveu e vai melhorando o método científico ou que existem diferentes níveis de evidências, estudos dupla e triplamente cegos, revisões de pares entre outras ferramentas que partem de um critério comum: o ceticismo. Certamente, estamos perante uma das maiores lições de humildade da humanidade.
© Paulino Moreira; Blog REP, 2021.
Bibliografia:
· App Dicionário de Língua Portuguesa, Porto Editora
· Kahneman, D. Tversky, A. “Pensar, depressa e devagar". 9ª Edição. 2018
· Kahneman, D. Slovic, P. Tversky, A. “Judgment under uncertainty: heuristics and biases”. 24ª Edição. 2008
· Pilati, R. “Ciência e pseudociência: porque acreditamos naquilo que queremos acreditar”. 2018
· Taleb, N. N. “O cisne negro – o impacto do altamente improvável”. 9ª. Edição. 2018
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