Sobre o verdadeiro exercício funcional
Agora que captei a atenção do leitor para este artigo, posso desde já descansá-lo que este não pretende ser um ataque a este método de treino, mas sim uma abordagem realista e contextualizada do que o treino funcional deveria ser e do que muitas vezes encontramos nas salas de exercício e nos media.
Ao longo das duas últimas décadas, o termo funcional elevou-se no contexto do fitness, tornando-se sinónimo de uma prática salutar de exercício físico. Popularizado por Gary Gray e Juan Carlos Santana, foi ganhando adeptos por todo o mundo, sendo definido pelo último como o “desenvolvimento da força funcional específica para uma dada atividade” (1). Mais ainda, o autor refere que “se um exercício possui especificidade biomecânica, consegue ser realizado sem dor, consegue ser realizado com uma execução correta e melhora a qualidade do movimento de semana para semana, é considerado um exercício funcional e efetivo” (1). Daqui podemos facilmente constatar que o termo funcional está intimamente indigitado ao princípio da especificidade, onde vemos o próprio autor a referir que “quanto mais um exercício simular a atividade em causa, mais específico e funcional é” (1).
Daqui levantam-se duas questões:
Simular, espelhar ou imitar um movimento de uma dada atividade não significa ser equivalente à realidade da mesma. Um gesto desportivo semelhante não é um gesto desportivo igual. Por exemplo, correr com trenó, correr com paraquedas, bater com um taco de basebol com donuts na ponta do taco para criar mais peso (logo, aumentar o momento da batida), etc., já foram descritos como não tendo ajudado à performance, chegando mesmo por vezes a piorá-la (mas isso seria um tema para outro artigo).
A segunda questão que quero abordar (e que, na minha opinião, é mais importante na nossa profissão) é o do princípio da especificidade. Este princípio do treino indica que, para melhorar determinada componente física, essa mesma componente deverá ser enfatizada no treino (2). Sim, de fato é um princípio importante na nossa prática, mas rege-se essencialmente pela manipulação das variáveis volume e intensidade (3), ou seja, pela dose do exercício em causa. Contudo, antes de passarmos a essa manipulação, devemos conhecer primeiro QUEM irá realizar o exercício. Assim, o princípio basilar na nossa atuação deverá ser o princípio da individualidade, o qual defende que devemos ter em conta as necessidades e a disponibilidade do sistema neuro-musculo-articular dos praticantes, na medida em que não existem duas pessoas a responder de igual forma a um mesmo programa de treino (4).
Ora, sendo a nossa prática essencialmente para o “comum dos mortais” (retiremos da equação as exceções dos atletas a treinar nos nossos ginásios, os quais poderão/deverão ser orientados para a melhoria da sua performance), se defendemos que pertencemos a uma atividade que se preocupa com o desenvolvimento e melhoria do sistema neuro-musculo-articular dos seus praticantes, enfim, se queremos, de fato, ser considerada uma área associada à saúde, o princípio regente não deveria ser o da individualidade? Fica a questão no ar, para já.
Fazendo uma análise ao que foi descrito até aqui, importa colocar 3 questões fundamentais:
1) Um exercício poderá ser, só por si, considerado funcional?
2) Se existem exercícios funcionais (que já vêm descritos nos livros da especialidade), o que os distingue dos demais?
3) Existindo exercícios funcionais, tal significa que todos os que não estão descritos nas sebentas serão não funcionais (não servem para nada) ou disfuncionais (pioram o estado do praticante)?
É esta abordagem crítica ao que me comprometo ao longo do presente texto.
1) Um exercício poderá ser, só por si, considerado funcional?
Burpees, push ups, agachamentos, saltar para caixas, sacudir cordas, exercícios em plataformas instáveis, utilização do TRX, elásticos ou bolas (medicinais, slamball, wallball), entre outros, são comummente considerados exercícios funcionais.
Um dos fundamentos do treino funcional passa pela substituição dos exercícios realizados em máquinas (onde existe uma maior restrição de movimentos), para exercícios que permitam uma maior liberdade de execução. Por um momento, esta premissa parece ter lógica, senão vejamos: no nosso dia-a-dia não temos restrições impostas por qualquer material ou estrutura (movimentando-nos livre e naturalmente); a execução dos exercícios funcionais é livre de restrições mecânicas externas; logo, os exercícios funcionais são os que mais se adaptam a condição humana. Seria, de facto, fantástico se pudesse ser assim tão simples e fácil, mas já lá iremos.
2) Se existem exercícios funcionais, o que os distingue dos outros?
Aqui, vou iniciar com que seria, pela lógica argumentativa, a minha conclusão: sim, existem exercícios funcionais. O que os distingue dos demais? O facto de servirem a individualidade do praticante e irem ao encontro dos seus objetivos. Então vejamos.
O termo funcional deriva de função, ou seja, um exercício dito funcional visa melhorar determinada função. Mas isso, só por si, não nos diz nada. Se o exercício será aplicado a um indivíduo, então a função (o funcional) a melhorar será a dele. Aqui, começamos a vislumbrar que os exercícios funcionais já estabelecidos e pré-escritos partem de um erro lógico, pois consideram que a função/funcionalidade está contida em si próprios (a sua denominação assim o indica) e não em quem o realiza. A meu ver, o grande erro que se vem a exacerbar é este mesmo: “quero melhorar a função do sistema NMA do praticante em determinado gesto”; “este exercício imita o gesto que quero melhorar”; logo, “o exercício (imitador) melhora a função”. Aqui, o foco está todo no exercício, quando deveria estar no praticante. Proponho que alteremos então esta visão: “quero melhorar a função do sistema NMA do praticante em determinado gesto”; “o praticante (o seu sistema NMA) demonstra determinada disponibilidade”; logo, “vou construir determinado exercício, baseado nessa mesma disponibilidade NMA, visando a melhoria de determinado gesto”.
Penso que já se começa a perceber onde quero chegar com tudo isto. Mas continuemos mais um pouco.
3) Existindo exercícios funcionais, serão os demais não-funcionais ou disfuncionais?
Este ponto vem no encadeamento do anterior. Como defendi: sim, existem exercícios que poderão ser considerados funcionais, desde que melhorem a função do praticante. Mas não pode ser só isto, pois uma coisa é melhorar, outra é melhorar o que pretendo.
Defendo que só aqui é que deverá entrar o princípio da especificidade: após o da individualidade. Deverá ser subsequente a este, deverá ser regido pelas leis do corpo do praticante e, como tal, deverá ser construído (ao invés de pré-escrito) em função da sua disponibilidade NMA. Aliás, o termo diferenciador é mesmo “construir”, o qual significa “reunir e dispor metodicamente as partes de um todo” (DLP).
Assim, o exercício verdadeiramente funcional terá de ser construído tendo em vista um determinado objetivo, ou seja, deverá ser específico no binómio entre “para quem” (o praticante – a individualidade) e “para quê?” (qual o objetivo – a especificidade). Todos os outros serão apenas exercícios que desenvolvem determinadas capacidades no praticante, mas sem qualquer tipo de individualidade ou especificidade, portanto, será “algo” presente no treino, mas sem contexto, sem base para lá estar presente. Poderá ser bom? Talvez, mas aí estaremos entregues à sorte (e isso não costuma ser proveitoso para ninguém, pelo menos para sempre).
Posto tudo isto, facilmente chegamos à conclusão de que exercício funcional não poderá ser algo pré-escrito ou padronizado, mas deverá antes ser uma construção criteriosa, elaborada num contexto que terá de ter em conta imperiosamente o praticante e o seu objetivo.
O que é funcional para um poderá não ser para outro (para não afirmar que não o é certamente) e, certamente, não será o exercício X ou Y numa sebenta da “especialidade”.
Movimento livre vs máquinas guiadas
Como vimos até agora, se, para um exercício ser funcional, devemos ter em conta o praticante e o seu objetivo, qual a lógica de deixar de fora uma classe de exercícios, nomeadamente, as máquinas guiadas? Não será contraproducente (para não afirmar ser uma falta de ética profissional e moral), não oferecer ao cliente uma determinada opção, mesmo que possa ser a mais indicada, apenas devido a crenças e ideologias? Avancemos e passemos à atualidade e ao que vemos por aí.
Continuamos a ver inúmeros pseudo-profissionais a desvirtuar este método. Penso que não entenderam o intuito da mensagem de Juan Carlos Santana, quando afirmou que “com pouco dinheiro e um saco com material, um treinador consegue treinar um atleta ou uma equipa inteira”, bastando “15 a 20 minutos de exercício em qualquer lugar e altura do dia” (1). Estas afirmações pretendiam dar vida à expressão “migalhas é pão”, onde se nota que, mesmo com pouco (material, infraestruturas, etc.) se poderá conseguir muito (treinar de uma forma saudável e salutar desde o praticante ocasional, até ao atleta de alta competição). Mas a mensagem foi deturpada e, atualmente, temos um setor repleto de profissionais desqualificados e números circenses (1), com completo desrespeito para com o praticante. Repare o leitor a referência que acabei de apontar, é o próprio Santana que se refere ao que se vê por aí como um circo (afinal o título que escolhi para o artigo não é assim tão sensacionalista!).
O exercício em máquinas guiadas poderá ser benéfico em imensas situações, seja por questões de segurança, por maior restrição de movimentos noutros planos que não o que pretendemos exercitar, ou ainda para uma maior focalização na ação de determinados grupos musculares (relembro que não existe “isolar músculos”, mas sim uma “menor integração”). Só para citar dois exemplos: o banco de hiperextensão lombar é um equipamento cuja utilização, após ter sido desaconselhada durante muito tempo, tem sido referenciado como um ótimo meio a utilizar para o aumento de força dos extensores da coluna e diminuição da sintomatologia num quadro de dor lombar crónica (5, 6). Da mesma forma, o Leg Extension, ao estimular os extensores do joelho, contribui para o aumento da força do quadríceps, o que é fundamental após lesão do ligamento cruzado anterior (7).
Agora, repare o leitor que, se existem exercícios realizados em máquinas guiadas que poderão ser uma ferramenta válida, cientificamente suportada e ao alcance do profissional, como não os usar, apenas e só devido a crenças pessoais (infundadas) que não são funcionais? Mais uma vez deixo à consideração do leitor fazer o seu próprio escrutínio, mas uma coisa é certa, as adaptações ao exercício são sempre no indivíduo e nunca no equipamento utilizado.
As plataformas digitais e as redes sociais encontram-se pejadas de pressupostos profissionais versados e ditos experientes na área, que apresentam um conteúdo atrativo, desafiante e motivador, prometendo alcançar resultados fantásticos a curto prazo. Contudo, a grande maioria apenas advoga e ministra uma prática ineficaz e, por vezes, perigosa (1). Daí, não será de admirar que continuemos a não receber a confiança (que deveria ser merecida) pelas restantes classes de profissionais de saúde. Esses, continuam a basear a sua prática em evidência científica e, como tal, possuem um estatuto de profissionais realmente qualificados. Provavelmente deveria ser esse o nosso caminho também.
De forma a concluir este texto, espero ter esclarecido que um exercício funcional apenas se deverá apelidar assim caso tenha em conta o interveniente mais importante no processo de treino: o seu praticante. Contudo, não chega adequar o exercício à individualidade do seu sistema neuro-musculo-articular. Este deverá ser construído de acordo com o objetivo definido (específico), de forma a fazer sentido a sua realização. Exercícios já pré-concebidos numa sebenta não serão, por si só, funcionais (apenas o serão se forem produzidos de acordo com os dois pressupostos acima referidos), nem tão pouco tal designação deverá ser dada em função do equipamento utilizado e dos graus de liberdade que o mesmo permite (exercício é exercício).
Mesmo que se considere que, para ser funcional, um exercício deva ser livre (e assim, propositadamente, impossibilitar o praticante de ter acesso a um leque superior de opções), acima de tudo não devemos entrar numa guerra do pró-funcional e do contra-funcional (leia-se "exercício livre vs exercício em máquinas guiadas"). É uma metodologia como outra qualquer, com os seus prós e os seus contras. Qual o lado da trincheira que o profissional do exercício físico deverá tomar? Simples: o do praticante. Para tal, avaliemos os praticantes, criemos sinergias entre profissionais de várias áreas (sempre que possível) e construamos exercícios client fit; peguemos nos prós da metodologia e apliquemo-los com conhecimento. De resto, vamos esquecer as fórmulas mágicas.
Oxalá o Fitness e todo o processo de treino/construção de exercícios fossem tão fáceis e intuitivos como gostam de nos fazer crer, mas não: continua a ser necessário estudar!
© David Costa, 2020
Direitos de autor protegidos
Bibliografia:
1. Santana, J. C.: Functional Training, Human Kinetics, 2016.
2. https://www.oxfordreference.com/view/10.1093/oi/authority.20110810105645210
3. Coffey V., Hawley J.: Concurrent exercise training: do opposites distract? J Physiol. 2017 May 1;595(9):2883-2896.
4. https://www.oxfordreference.com/view/10.1093/oi/authority.20110803100346197
5. Steele J, Bruce-Low S, Smith D, Jessop D, Osborne N.: Isolated Lumbar Extension Resistance Training Improves Strength, Pain, and Disability, but Not Spinal Height or Shrinkage (“Creep”) in Participants with Chronic Low Back Pain. CARTILAGE. 2020;11(2):160-168.
6. Steele J: A review of the specificity of exercises designed for conditioning the lumbar extensors. British Journal of Sports Medicine. 2013; October49; (5).
7. van Grinsven, S., van Cingel, R.E.H., Holla, C.J.M. et al. Evidence-based rehabilitation following anterior cruciate ligament reconstruction. Knee Surg Sports Traumatol Arthrosc 18, 1128–1144 (2010).
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