Sobre a qualificação da experiência de treino como marco da mudança que se espera ...
Nos últimos tempos tenho escrito e publicado muito acerca do estado atual do sector do Fitness. Num primeiro artigo (O Fitness 2.0 Foi um Downgrade) fiz uma critica à forma como o sector vive alheado do seu real problema, onde critiquei também a forma como muitos dos líderes de opinião varrem a poeira para debaixo do tapete - e há quem diga que sou muito pessimista nesta matéria, mas não sei quem é mais pessimista: se eu, que luto por uma mudança; se "uns outros" que querem que isto continue na mesma! Depois, num outro artigo (O Personal Trainer Não Tem de Vender), apontei uma causa escondida – e que foi colocada a descoberto com a crise – para a dificuldade que o Fitness sempre teve (e tem ainda) em captar/reter clientes, apesar de vender (supostamente) saúde – o que é um facto antagónico e extremamente incomodativo (pelo menos, para quem realmente gosta de trabalhar nesta área). Neste último artigo esclareci que é possível os profissionais de Fitness serem procurados, fomentarem uma compra espontânea por parte do cliente, em vez de se pressionarem constante e permanentemente à venda direta, emocional e agressiva que tantas vezes ocorre por esses ginásios fora. Esclareci que isto só ocorrerá se o profissional de Fitness conseguir ter uma imagem social autoritária no que toca a assuntos relacionados com o exercício físico, e que tal autoridade só se alcança com um conhecimento teórico-prático que seja entregue sob forma de um serviço que proporcione uma experiência de treino positiva para o cliente – e talvez agora muitos achem que não estou a falar de nada de novo... bem, se não é novo, então seremos todos masoquistas, porque continuamos a protelar a ação enquanto vemos o nosso sector “afundar”, se estou a falar de algo novo, então, deixemos a resistência de lado e prossigamos com esta ideia.
Posto isto, hoje escrevo para finalizar o meu raciocínio. Afinal, como poderemos conseguir gerar uma experiência de treino realmente qualificada? Ora, assumindo que muitos dos que me leem são Técnicos de Exercício Físico (por estatuto legal), muitos sentirão que já proporcionam um serviço de qualidade (por autoconfiança) e outros tantos que já consigam até uma experiência percebida pelo cliente como sendo muito favorável e digna de se pagar por isso, apraz-me afirmar que quando apelo à qualificação do serviço não quer dizer que eu ache que o serviço seja mau – na sua generalidade, até acho que no nosso Portugal se faz um bom trabalho, comparativamente ao que tenho visto noutros países. Mas, acredito que seja possível melhorar o serviço mais ainda, otimizando os 6 âmbitos que sinto serem chave para tal: cliente, objetivo, construção do exercício, monitorização da execução, progressão e socialização. E porque acho isto? Parafraseando o psiquiatra espanhol Luís Rojas Marcos, porque acho que ser realmente otimista não é ver o copo meio-cheio (isto não passa de uma observação seletiva), mas antes termos esperança e confiança para desenvolvermos a capacidade para encher o que falta.
Neste sentido, e porque infelizmente o espaço para a escrita é curto demais para discorrer exaustivamente sobre todas as áreas propostas (algo que somente faço em palestras ou formações), irei simplificar e resumir um pouco, mas sem perder utilidade para qualquer profissional do exercício que me esteja a ler. Falarei do âmbito CLIENTE. Quem é?, ou melhor, quem deve ser para nós o cliente?
Numa experiência desqualificada, o cliente é traduzido num tipo de personalidade – comummente estratificada num insuficiente sistema de classificação do seu modo de socialização, como o DISC (diretivo, interativo, sereno e cauteloso). Representará ainda um conjunto de informações, recolhidas num habitual questionário de saúde e historial desportivo, que não serão mais do que as lesões que teve ou tem, que patologias diagnosticadas teve ou tem, que desportos praticou ou pratica. No entanto, no campo das suas características funcionais, poucos dados são recolhidos! Quando muito, ao recorrer aos tradicionais protocolos de avaliação, poderá o Treinador saber o seu VO2máx predito, o seu nível de mobilidade geral da cadeia anterior no sit-and-reach (habitual e erradamente designada de flexibilidade da cadeia posterior), ou até a quantidade de repetições que pode executar num exercício de push-ups ou sit-ups. Algumas vezes ainda se verifica a inclusão do protocolo overhead squat, para aferir a capacidade do individuo agachar com os ombros em total flexão.
Parece muito, tudo isto? Parece muita e suficiente informação? Talvez, para o Treinador que não ambiciona proporcionar uma experiência realmente qualificada. Mas que informação falta aqui? Na verdade, a questão não é na quantidade de testes usados. A qualidade não se adquire com quantidade – não necessariamente –, mas sim aplicando os testes certos, os que forem úteis ao objetivo de alimentar a construção de cada exercício com informação que permita apropriar a sua configuração ao cliente. E isto deve ser assim, porque não deverá ser o cliente a ter de se adequar à forma do exercício, mas sim o contrário. Portanto, numa experiência qualificada, a tudo o que indiquei anteriormente, o Treinador deverá acrescentar os testes necessários à construção de cada exercício de forma realmente apropriada ao sujeito e aos seus objetivos. Testes estes, que deverão aferir a sua presente condição estrutural e funcional, ou seja, o seu atual estado articular e muscular, no que respeita à forma como o seu sistema nervoso controla os demais músculos em função de gerir a dificuldade que é imposta pelo próprio exercício. No que respeita a esta informação, os protocolos de avaliação tradicionais poderão dar-nos alguma informação à partida. Contudo não nos possibilitam observar e identificar as carências específicas de cada articulação ou de cada músculo, já que são ações motoras demasiado integradas e complexas para que tal seja aferido. Não faz sentido, é insuficiente, é desqualificar por completo a verdadeira essência da avaliação das capacidades motoras.
Assim sendo, num serviço de qualidade, o cliente não é só uma personalidade específica e um conjunto de doenças/sintomas e historial de prática desportiva. Acima de tudo, o cliente é um conjunto de características neuro-músculo-articulares, que o incluem algures num espectro de disponibilidade para estimulação com aplicação de resistências. É necessário saber que amplitudes ativas (voluntárias) detém cada articulação em cada um dos seus eixos; que qualidade contráctil possui cada grupo muscular envolvido – e em vários comprimentos. Com toda esta informação procura-se inferir o grau de tolerância que sistema motor apresenta ao distúrbio a que nós habitualmente chamamos de exercício. Sem isto, nada sabemos do cliente, nada da sua motricidade, e é com esta que ele executa tudo o que lhe pediremos durante o treino. Logo, sem esta informação, não teremos garantia de um treino seguro, nem dirigido. Estará a escapar ao controlo do Treinador a disponibilidade que esse mesmo corpo possui para receber esse estímulo.
Esta noção de cliente que proponho é incontornável, pois sem ela os restantes 5 âmbitos não evoluirão em qualidade: não teremos noção das necessidades individuais; logo, não conseguiremos criar exercícios específicos o suficiente para atender a tais objetivos; logo, não saberemos que variáveis serão de imprescindível observação – uma vez que cada exercício teria a sua componente crítica; não saberemos, nunca, por onde progredir o exercício, nem sequer se seria estritamente necessário fazê-lo; e, claro está, não teremos o exercício e o corpo do cliente como o centro da socialização com o mesmo, porque apenas nos restará dialogar com ele sobre coisas supérfluas e que em nada melhoram o seu estado de saúde.
© João Moscão, 2022
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Parabéns João, contundente, objectivo e pertinente.