«O pensamento céptico é o meio de construir e compreender um argumento racional e – o que é particularmente importante - de reconhecer um argumento fraudulento ou falacioso.»
(Carl Sagan - Um Mundo Infestado de Demónios)
No meu anterior artigo de opinião “Quem Quebra Paradigmas no Fitness" procurei alertar e fundamentar para a importância do papel dos técnicos de exercício físico (TEF) como um prolongamento daquilo a que as autoridades científicas nos vão revelando, ou seja, a maior capacidade crítica dos operacionais do treino sob pena de interromper toda uma cascata natural do conhecimento. Primeiro, porque tal consequencialismo só poderá ocorrer se os TEF estiverem apetrechados de ferramentas do conhecimento que permitam efetivamente interpretar, compreender e contextualizar a mensagem dos que pesquisam; segundo e parafraseando o cientista Carl Sagan: “as autoridades já cometeram erros no passado e voltarão a cometê-los no futuro (…) em ciência não há autoridades, quando muito há especialistas".
Naquilo a que se refere o fluxo enorme de informação hoje disponibilizado e ao seu tratamento, apontei dois grandes fatores a concretizar: 1) capacidade de interpretação das respetivas leituras e/ou literacia científica; e 2) o tempo disponível e/ou disponibilizado pelos profissionais para “digerir" e refletir sobre aquilo que se lê. Será pois, sobre o primeiro ponto – mas tendo inevitavelmente como pano de fundo o segundo - que procuro no presente texto desenvolver e acrescentar ferramentas de utilidade prática, em particular no campo da lógica.
Lógica:
Um pouco de história, o seu significado, utilidade e aplicação .
Foi o filósofo grego Aristóteles quem institucionalizou a disciplina da Lógica, embora se afirme que esta já vinha sendo estudada antes de si. Apesar disso, é considerado unanimemente como o pai da lógica e foi sua intenção sistematizar este ramo do conhecimento por intermédio da sua obra “Organon”. Aristóteles considerava que os esquemas mentais dos gregos eram dominados sobretudo pelas tradições mitológicas, isto é, tanto a interpretação dos fenómenos naturais quanto os valores morais encontravam aí a sua resposta e fundamentação. Ora não será difícil concluir que numa civilização cuja ciência emergia com grande pujança o contraste com a mitologia era evidente. Assim, como necessidade de demarcação, a etimologia do termo “lógica” deriva do grego “logikós”, que significa “a arte de raciocinar" (1).
É bem clara, como dito acima, a necessidade de “verdade" e “validade" das explicações dos fenómenos naturais e a transformação desta arte de raciocinar num sistema e dispositivo na condição de testes para avaliar a legitimidade de argumentos e inferências, quer nas ciências, quer nos diálogos do dia a dia (2).
Não é de todo minha intenção ensinar lógica com este texto, ainda mais sabendo do largo espectro da aplicação desta ciência no campo do conhecimento – desde a linguística até à matemática e computação. Filosofia não é a minha área formativa. Mas, e reconheço que este poderia ser um grande “mas", dei-me à liberdade de explorar este campo nos últimos 2 anos e por isso é minha convicção que a instrumentalização, mesmo que simplificada, de alguns temas da lógica aplicados ao fitness servem mais… do que nenhuns! Poder-se-á questionar – questionar é sempre legítimo, desde que haja “boa vontade" e por isto entendo o “questionar" com intenção de acrescentar algo – quais os fundamentos dessa minha convicção? Responderei, espante-se pela ironia, com base em duas autoridades: o cientista Carl Sagan na sua obra “Um Mundo Infestado de Demónios”, apelidou estas (e outras) ferramentas de “kit“ ou “arte de detetar disparates”; o filósofo Desidério Murcho afirmou que “só uma deficiente formação científica e pedagógica pode transformar a lógica elementar num domínio esotérico, formalista e de difícil compreensão”. Como demonstrarei a seguir, nem sempre a invocação das autoridades tem de ser necessariamente fraudulenta. Para isso existem critérios que distinguem o argumento válido e verdadeiro de uma falácia.
Ficaremos pois, pela lógica simples e o que nela respeitam as falácias argumentativas mais comuns.
Falácias:
Significado, quais as mais comuns e seus exemplos.
O termo “falácia” deriva do latim: “fallatia". Diz respeito à qualidade do que é falaz; engano; falsidade. Afirmação falsa ou errónea (1). O argumento de que o Paulino não conseguiu bons ganhos de força porque não gosta de cães, não é bom! É tão óbvio que não é enganador. Alguns argumentos não nos enganam porque simplesmente não são convincentes. O problema é quando parecem convincentes, e não são. Essa é a vantagem de estarmos alerta e possuirmos algumas ferramentas da lógica. Assim, alguns maus argumentos são classificados como falácias.
Segundo Desidério Murcho, uma falácia é qualquer argumento que, apesar de não ser bom, parece que o é (4). Estas, inadvertida ou intencionalmente proferidas, podem ser classificadas de paralogismos ou sofismas, respetivamente. Os primeiros, se traduzem falhas involuntárias, enganos perfeitamente justificáveis (e perdoáveis); os segundos, se aparecem de modo deliberado, induzindo ao erro (5). Vejamos então as falácias mais comuns e perigosas da lógica e da retórica. Podemos encontrar alguns exemplos no fitness:
Ataque pessoal
Argumentum ad hominem – expressão latina que significa “dirigido ao homem", atacando quem argumenta como forma de refutar o argumento em si.
Exemplo:
O Paulino não é um bom treinador, porque é algarvio, os algarvios são uns provincianos, e o pessoal da província não pode ser bom treinador!
Explicação:
O que é realmente colocado em causa antes de tudo é a pessoa em si e aquilo que a caracteriza, a sua idoneidade é posta em causa pelo facto não-relacionado de ser provinciano. São apontadas características que nada têm que ver com o seu desempenho profissional.
Apelo ao relativismO
Demissão do dever de contra-argumentação sob a justificação de que não há verdades absolutas, mas sim opiniões/perspetivas – sem a devida justificação de tal afirmação.
Exemplo:
Sujeito A: Não existem estudos sólidos que corroborem as afirmações dos vendedores de fatos de electroestimulação.
Sujeito B: Ora! Hoje a ciência diz uma coisa e amanhã diz outra. O que hoje é verdade, amanhã é mentira. Por isso é apenas a tua perspetiva.
Explicação:
Perante a falta de provas objetivas em favor de um determinado efeito prometido, o Sujeito B refugia-se numa suposta subjetividade da verdade, isto é, que apenas existem interpretações pessoais dos factos.
Falsa autoridade
Argumentum ad verecundiam – apelo à relevância do estatuto, antiguidade ou currículo (exceção para a autoridade epistémica) para afirmar uma conclusão verdadeira.
Exemplo:
A prática de alongamentos, natação e pilates são o ideal para a lombalgia, caso contrário os médicos não as recomendariam. Há anos que o fazem!
Explicação:
Para confirmar a eficácia daquelas três práticas é invocada uma autoridade de saúde e as suas recomendações ao longo do tempo. Todavia, a classe médica não se encontra em posição epistémica sobre a matéria, isto é, numa posição de especialidade que lhe dê força aos argumentos. Logo, trata-se de uma falácia com apelo a uma falsa autoridade. Se pelo contrário fosse invocada uma autoridade cuja especialidade fosse na dor lombar, nesse caso teríamos sim uma validação da palavra da mesma pois encontrava-se em melhor posição epistémica, ou seja, teríamos antes um argumento de autoridade.
Causa complexa
Atribuir causalidade de um efeito a um fator, pela omissão de todo um sistema causal.
Exemplo:
A D. Joaquina desde que se inscreveu no ginásio melhorou a composição corporal significativamente nos últimos 3 meses. Estou certo que foi o treino a fazer a diferença.
Explicação:
Uma vez que temos como conhecimento de fundo que a melhoria da composição corporal depende de várias causas, é clara a omissão das mesmas ao atribuir causa única ao fator “treino". Teriamos de considerar por exemplo, que mudanças fez na nutrição, na higiéne do sono, níveis de stress, etc.
Apelo à ignorância
Inversão do ónus da prova - apresentação da ausência de prova de invalidade, como prova de validade.
Exemplo:
Os fatos de electroestimulação promovem a ativação e aceleração metabólica. Até ao momento ainda não saíram estudos que contrariem este pressuposto. Logo, é verdade que estes fatos funcionam mesmo!
Explicação:
O facto de alguém afirmar o que quer que seja e essa mesma afirmação gozar de irrefutabilidade (muitas vezes temporária), não lhe atribui verdade e validade. Além disso, este é um esquema ardiloso, pois o ónus da prova cai sempre do lado de quem faz a afirmação e não o contrário.
Extrapolação precipitada
Generalização ou simplificação de uma conclusão com base numa amostra implausível ou demasiado pequena.
Exemplo:
Tenho pelo menos uns 2 clientes cujas aulas de pilates resolveram as queixas de lombalgia. Não tenho dúvidas, aquela aula é mesmo perfeita para este tipo de situações!
Explicação:
Baseada numa observação casual (o que aquela pessoa observou no seu quotidiano) fez-se uma extrapolação para um todo. Em contraste, a observação científica é sistemática: teríamos de observar com o maior controlo possível o maior número de casos possíveis de tratamento da lombalgia por intermédio de pilates.
Conclusão
Na verdade, a profissão de TEF é jovem e não foi há tanto tempo atrás – e infelizmente continua a sê-lo – que a base do conhecimento técnico assentava grandemente na intuição ou em meras opiniões pessoais dos treinadores. A maior ou menor experiência enquanto executante numa determinada prática física em contexto de fitness determinava autoridade e reconhecimento. É também recente e lento o reconhecimento do nosso papel na prevenção tanto pelos órgãos de governo, sociedade civil e demais profissionais de saúde.
A aquisição de competências é por isso imperativa para a credibilidade da profissão, não só no domínio científico, mas também noutros: o domínio exímio da língua e, pelo menos, umas noções gerais de disciplinas como a filosofia. Na parte que me toca, uma vez mais recordo a vastidão e complexidade do tema deste artigo. Procurei simplificar por modo a torná-lo numa ferramenta útil para aplicação prática sem ser maçador ler sobre o mesmo. E, porque não, a provocar o leitor para que pela sua própria iniciativa o explore e desenvolva a seu ritmo e necessidade próprios.
© Paulino Moreira, 2019
Bibliografia consultada:
1. Dicionário de língua portuguesa, porto editora
2. Hegenberg, L. 1995 “Dicionário de Lógica”, pág. 120
3. Murcho, D. 2003 “O Lugar da Lógica na Filosofia", pág. 7
4. Murcho, D. 2019 “Lógica. O Essencial”, pág. 71
5. Hegenberg, L. 1995 “Dicionário de Lógica”, pág. 81
Comments