“Para quê a filosofia no fitness e exercício?”, perguntam-me algumas vezes, com a admiração de quem desaprova – hoje escrevo sobre isto!
Com a enorme crise que o mercado do fitness vive, urge, mais que nunca, a melhoria da qualidade técnica dos profissionais. Seja o profissional formado por via académica, ou pela via técnica (licenciatura e TEEF, respetivamente) – nem é isso que chega a estar em causa – a sensibilidade do consumidor, numa época de medo do contágio viral e de grande preocupação com os gastos financeiros (época esta que vai durar), não deixará escapar (cada vez menos) a má qualidade.
O cliente do futuro (próximo), a meu ver, será um cliente que até poderá querer pagar, afinal, a disseminação global da prática de exercício físico que a quarentena por COVID-19 obrigou a fazer por via virtual (redes sociais, websites, etc.) fez ver ao mundo inteiro o quão inequívoca é a relação entre exercício e saúde. Mas, que não se faça confusão: esta disseminação massiva nivelou os preços de todo o mercado por baixo, por dois simples motivos: 1) as dificuldades económicas dos profissionais obrigaram a uma baixa dos preços; e 2) as dificuldades económicas dos praticantes obrigaram a uma baixa dos preços. Ou seja, os dois fatores envolvidos no binómio de consumo de fitness (profissional e praticante) estão, mesmo que não queiram, a nivelar os preços por baixo.
Entretanto, claro, haverá quem já esteja a ler este artigo e a dizer que não é verdade, porque “no meu caso...”. Mas, repare, leitor, é só isso mesmo: “o seu caso”. A verdade é esta: alguns ginásios já nem chegaram a abrir; muitos já fecharam e a maioria dos que estão abertos estão com frequências de clientes de cerca de metade (ou menos), e já para nem falar nos ginásios que dependem das rendas dos profissionais por conta própria que, também cerca de metade, nem arriscaram ainda voltar – e mantêm-se a provir serviços domiciliários, ao ar livre e em meios virtuais.
Por tudo isto, dizia eu, o mercado carece de qualidade, não porque fosse pouca – apesar de eu ser um fervoroso crítico da qualidade técnica no fitness vigente, reconheço que nos últimos anos, com a emergência de algumas escolas de formação contínua que fomentam largamente o pensamento crítico, a qualidade subiu, porque a exigência na docência também subiu. A questão central é que o consumidor, agora e daqui em diante, durante uns bons anos, mesmo que decida gastar o seu dinheiro connosco, estará híper-sensibilizado ao preço. Que quer isto dizer? Que irá medir muito bem a diferença entre preço e valor, isto é, entre o que paga e o que leva – entre o dinheiro e a experiência. E é aqui que as habilidades técnicas e pessoais serão de suma importância (os tais “skills” que os gurus das vendas gostam de referir em inglês). Com isto, introduzo a necessidade emergente da influência da filosofia no exercício. (Eu sei que parece um salto quântico, mas dê-me tempo.)
Porquê a filosofia no exercício?
Desde há muito que a filosofia é uma parte integrante – inicial – em todos os cursos que crio e ministro. Com maior ou menor profundidade, maior ou menor analogia, a filosofia introduz a ciência e as metodologias práticas que ensino na área de avaliação, construção e monitorização da prática de exercícios com resistência (o vulgo “treino de força”). As razões são diversas, e, agora, prendem-se precisamente com a necessidade de qualificar os profissionais. Vejamos, em quatro pontos, para que serve a filosofia na nossa profissão: sabedoria, argumentação, ética e desenvolvimento.
Sabedoria
A filosofia, definida de forma simplificada como “amor à sabedoria” é, no fundo, o resultado da insatisfação que nós, humanos, sentimos ao procurarmos uma verdade que nunca se alcança – mas queremo-la, e queremo-nos dela cada vez mais perto. Assim sendo, só por si, já seria uma justificação satisfatória para a inclusão da filosofia nos programas de formação contínua dos profissionais do exercício, uma vez que se trata de uma área do conhecimento cuja ciência á ainda jovem e, por isso mesmo, dá saltos grandes no crescimento.
Com efeito, é difícil imaginar que, numa área de constante evolução científica e metodológica, e que tem como instrumento central o corpo e a saúde do praticante, haja profissionais que não gostem de aprender, ou que nem sequer queiram uma vaga aproximação com a verdade (o que é ainda pior). Além de inconcebível, deveria ser considerado criminoso – poderemos até ter opiniões diferentes, fruto da interpretação individual que fazemos dos mesmos factos, fruto também das diferentes experiências que todos temos, mas, não querer sequer ter uma opinião formada é, de facto, perigoso. Perigoso, porque sem sabedoria a crença acéfala cresce como um cancro maligno, que não olha a meios para destruir toda e qualquer opinião que contra ela se levante – e na nossa área levantam-se opiniões com base diária, e muitas deveras interessantes e importantes de dar ouvidos. A filosofia garante que o intelecto do profissional compreende o praticante, em toda a sua extensão (nomeadamente a física), e que essa compreensão se mantém em constante renovação, nunca estanque, para que todos os dias possa olhar o fitness com outros (novos) olhos.
Argumentação
Independentemente da opinião que cada um tenha, e mesmo que ela se apresente na forma de uma simples afirmação, tal como “os alongamentos previnem as lesões musculares”, subjacente estará sempre um raciocínio explicativo que articula uma série de premissas e deriva uma conclusão. E por mais falacioso que seja esse argumento, todos temos argumentos para o que afirmamos – maus ou bons, pouco interessa agora para o caso.
Entretanto, para que a nossa profissão possa evoluir, será preciso a partilha de conceitos e experiências entre pares; mas, para isso, é preciso que haja uma comunicação que vá convencendo (persuadindo) em cadeia com um racional argumentativo (um logos, como designavam os gregos antigos). Caso contrário, tudo caí por terra, tudo vale, nada vale, cada um tem a sua verdade e ninguém chega a lado algum – o coletivo não chegará a lado algum. Aliás, se o leitor concordou comigo no tocante à sabedoria, deverá concordar que a sabedoria depende do ensino, e o ensino depende da capacidade de transmissão de uma mensagem, e esta, por sua vez, depende da lógica dos argumentos fornecidos, sob pena de não persuadir, não ser aceite e morrer, ali, na sala de aula – assim, nunca vendo a luz do dia, isto é, não chegando sequer à aplicação prática.
Ora, a área que estuda os raciocínios de argumentação, para que possamos interpretar os factos e transmitir a nossa opinião, é, precisamente, a filosofia, nomeadamente a lógica elementar. E a aplicação é direta: a nossa área é essencialmente científica, e a ciência tem uma frequência de produção e publicação quase diária – todos os dias são publicados estudos, e muitos que se contradizem com ótimos argumentos –, e cabe-nos, a nós, treinadores, a interpretação lógica dos elementos que constituem os supostos factos reportados pelos autores dos estudos. E disto depende (muito) a qualidade técnica do profissional: a triagem criteriosa, que é, por natureza, um raciocínio filosófico.
Ética
Creio que a palavra que dá título a este parágrafo é bem aceite por todos os meus leitores: sem ética, a nossa profissão – o nosso sector – não irá ser valorizado na sociedade e não proliferará na civilização por muitos mais anos. Agora, apesar do termo “ética” andar nas bocas de todos os gurus motivacionais como um dado adquirido, e como se todos soubessem o que é, não aparenta ser bem entendido. Se, por um lado, me têm criticado por introduzir uma grande componente filosófica nas minhas exortações sobre exercício físico, mas, por outro lado, reconhecem que a ética é importante, é claro que não sabem o que é ética. É que a ética não é um mero estatuto legal que vincula uma determinada profissão a determinados comportamentos – isso não passa de um papel que, tal como tantos outros em Portugal, não será aplicado, porque não é fiscalizado e há uma total impunidade para os que não a cumprem.
A ética é uma das mais importantes e centrais áreas de estudo da filosofia (com mais de 2000 anos de idade) que se dedica a responder à simples pergunta: “o que é viver bem?”; ou, no caso da nossa profissão: “o que é ser um bom profissional?”, “o que é avaliar bem um praticante?”, “o que é construir bem um exercício?” e “o que é monitorizar bem um exercício?”. Posto isto, creio não haver dúvidas na utilidade da filosofia.
Desenvolvimento
Por fim, vejamos o mais óbvio: será possível existir um bom profissional que não seja boa pessoa? Isto é, poderá a pessoa ser totalmente dissociável dos seus atos profissionais? Quando, todos os dias, constatamos que o nosso estado de espírito (seja lá o que isso for, digamos, então, a nossa disposição de personalidade) oscila e, com ela, oscila a nossa qualidade profissional ou, pelo menos, há uma alteração no potencial profissional (atenção, disponibilidade, acuidade, precisão, raciocínio, etc.), na rede de pensamentos de fundo que acompanha a nossa atuação técnica, então, não será isso um indício de que a nossa personalidade media a nossa “profissionalidade”? Voltando à pergunta, a resposta é óbvia: antes de ser bom profissional, há que ser boa pessoa. Em que cabe, aqui neste particular, a filosofia? Bem, caso não saiba, leitor, a filosofia dedica-se a duas grandes áreas há mais de 2500 anos: compreender o mundo, compreender o homem. Mas, com que intuito empreendeu a filosofia este tremendo desafio? Com o intuito de melhorar a nossa vida, curta ou longa, melhorá-la. E a proposta, redundante com o primeiro fator apresentado (sabedoria) é esta: evitar ser-se um verdadeiro ignorante!
Onde está a filosofia?
A filosofia está em todo o lado no exercício:
Os filósofos da antiguidade (gregos e romanos) deram grande importância ao exercício físico e fizeram questão de vincar os raciocínios pelos quais defendem esta posição (veja, por exemplo: A República de Platão; Ética a Nicómaco de Aristóteles; Cartas a Lucílio de Séneca).
Todo o método que ainda rege a produção científica da área do exercício tem a sua génese em raciocínios filosóficos que iniciaram a estrutura de produção científica (veja, por exemplo: o Discurso do Método de Descartes) ou que instauraram o cultivo do ceticismo que pauta, ainda hoje, a boa ciência (veja, por exemplo, a história do período helenístico da antiga Grécia, nomeadamente o ceticismo de Pirro e Sexto Empírico).
As falácias e os erísmas – erros lógicos e estratagemas de engano, respetivamente –, trazidas à luz no século XX pelo famoso astrofísico Carl Sagan (veja, por exemplo: Um Mundo Infestado de Demónios do referido autor), e que já muito se divulgam para serem evitadas, têm o início do seu escrutínio no pensamento crítico de Aristóteles e, entretanto, importantes análises foram desenvolvidas por outros filósofos (veja, por exemplo: Dialética Erística de Schopenhauer; Lógica Elementar de Desidério Murcho).
Se reconhecermos que antes de qualquer exploração teórica ou prática é imprescindível que se proceda à definição de conceitos, então, há que dar o devido valor à filosofia, pois que é precisamente a área de estudo dedicada à definição do que são as coisas, bem como à análise dos erros de definição (veja, por exemplo: O Banquete de Platão; Da Alma de Aristóteles; Tratado da Reforma do Entendimento de Espinosa).
Tudo isto é filosofia, e tudo isto está no exercício. Com efeito, o exercício físico era visto pelos grande filósofos como algo importante, a interpretação dos factos científicos carece da filosofia para mediar as opiniões, porque a nossa área está carregada de opiniões sem argumentação (contrariedades, só porque sim...), a desconfiança natural humana e a procura de uma verdade sempre em andamento é, por definição, um modo de estar da filosofia e o sector do fitness tem uma certa tendência para estagnar (apesar da ciência evoluir), a análise cuidada dos argumentos para evitar os enganos precisa do crivo do raciocínio filosófico, e o fitness não tem um bom sistema de análise de factos, incorrendo, frequentemente, em enganos grosseiros, dando demasiada importância aos dois extremos do conhecimento (excesso de sustentação na prática, ou excesso de sustentação na teoria – falta uma ponte, e a ponte é construída com o ferro e o betão filosófico), e, por fim, a filosofia permite-nos definir – definir o que é exercício, para começar (e acredite, leitor, a ciência ainda se debate com as definições que nós, Treinadores, já julgamos estarem esclarecidas, tais como “exercício” ou “intensidade” – tudo em aberto...).
Para quê?
Perguntarem-me “para quê a filosofia no fitness e exercício?” é o mesmo que perguntar “para quê pensar?” – e, aqui, a resposta é obvia e nem merece perda de tempo. (Quem não quer pensar está na profissão errada; quem não gostar de filosofia nunca vai evoluir). Já que tantos gurus falam nas X regras de "ouro" para salvar o fitness e o exercício, envolvem-se em grandes quantidades de pensamentos redundantes sobre "mais-do-mesmo", aqui fica a minha sugestão: não precisamos de pensar MAIS, mas sim de pensar MELHOR.
© João Moscão, 2020
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